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A Biodança no século XXI e seus desafios no campo científico – Por Maria Idalice Silva Barbosa

A Biodança no século XXI e seus desafios no campo científico

Por Maria Idalice Silva Barbosa, psicóloga, PhD e facilitadora didata em Biodança.

 

Desde a criação da Biodança até o presente momento, passados mais de 20 anos do novo século, muitas coisas avançaram no âmbito das ciências. Rolando Toro, seu criador, era um homem interessado em ciências, todavia atribuía um valor significativo para suas experiências não apenas no âmbito científico, mas nas artes, poesia, mística, dança e teatro. Claro que isso faz dele um cientista com uma visão do fazer humano de forma mais ampla e integrada. Seu olhar era centrado na vida e seu fazer científico não estava dissociado da poesia e da sensibilidade artística de quem olha para a vida em sua inteireza, e não apenas a partir de uma racionalidade abstrata.

Desde as primeiras observações e experiências de Rolando Toro com o que ele chamava de Psicodança nos anos 70, já se passaram mais de meio século. De 1975 até 1980 chega ao Brasil, já com a denominação Biodança. Uma mudança que denotava uma melhor adequação do nome à experiência, uma vez que Psicodança carregava uma dissociação entre corpo e psique, entretanto, era o sujeito em sua inteireza, que era convidado a dançar.

Neste tempo, a Biodança aqui no Brasil, era difundida por meio de maratonas sem muitas elaborações teóricas e metodológicas. Era um período de ditadura em que o comportamento social era alvo do controle social autoritário das instituições governamentais e religiosas. Era uma nova abordagem que nascia juntamente com um contra movimento de libertação nos diversos movimentos sociais que lutavam contra repressões e ajustamentos em toda américa latina, marcada por ditaduras.

No início da década de 90 a Biodança começa a ser sistematizada como Disciplina Científica ganhando contornos e profundidade conceitual com um modelo teórico que se estrutura com um objeto, corpo conceitual, método e aplicabilidade social. Todo esse arcabouço teórico e metodológico é sistematizado a partir de um novo paradigma de pensamento que se desvencilhava de um antropocentrismo, para pensar a partir, e em função, da Vida: o paradigma Biocêntrico.

Como marco histórico deste período aconteceu o I Congresso Latino Americano de Biodança na cidade de Fortaleza, nordeste do Brasil. Já a partir da década de 80 temos uma proposta de Biodança com um corpo teórico estruturado e organizado por meio de dois volumes: os Tomos I e II, e também catálogos com organização de músicas e exercícios de Biodança. O Brasil se torna um contexto social em que se consolidou a Teoria da Biodança. Rolando faz deste país o berço da Biodança porque percebia no povo brasileiro uma potencialidade de expressão de vida, de paixão, de sensualidade, de força, de resistência, de beleza e plasticidade.

A Biodança não nasce, portanto, no âmbito acadêmico, mas no cotidiano, na efervescência do mundo do pós-guerra fria, com a queda de muros que separavam os mundos em capitalistas e socialistas. Muita coisa já mudou e o contexto social, político, econômico, científico, religioso, cultural e comportamental do mundo no século XXI traz outra face para humanidade.

Para compreendermos a Biodança no século XXI é importante a situarmos em seu período de construção histórica como ciência que cresce e se organiza fora do âmbito acadêmico, porque isso tem um peso significativo para a comunidade de Biodança e para sua compreensão como disciplina científica.

Primeiro é importante pensarmos que relevância tem para a Biodança sua sistematização como disciplina científica, porque é claro, ela não precisava da academia científica para ser difundida no mundo como prática. Segundo, é importante pensar que, no âmbito das ciências, ela é uma disciplina que se constitui à margem das ciências, sem grandes embates teóricos e epistemológicos no que se refere a sua proposição.

Bourdieu (2004) ao pensar sobre a construção da ciência propõe a noção de campo científico, como uma categoria analítica que enfatiza a existência de um espaço propriamente social, constitutivo da dinâmica da produção cultural em seus diversos âmbitos. É um pensador que dedica especial atenção à produção científica, apresentando a hipótese do campo científico em duas tradições antagônicas, para expor a necessidade de uma terceira via.

Segundo Bourdieu, de um lado, temos o que ele chama de “ciência pura”, que entende a ciência engendrando a si mesma em processo de autoperpetuação. Tratar-se-ia de uma espécie de “partenogênese”, uma vez que o entendimento desta lógica, nos leva a crer um desenvolvimento das ciências completamente independente do mundo social. Por outro lado, Bourdieu aponta uma “ciência escrava”, caracterizada por uma subordinação ao contexto, e sujeição a todas as demandas político-econômicas (2004, p.21).

Em meio a estas duas correntes de pensar o autor propõe uma compreensão do campo científico como algo intermediário entre as duas. Ele nos convida a pensar a ciência como uma construção social que se dá em um campo onde se insere diversos agentes e instituições que produzem, reproduzem ou difundem a ciência. O autor entende que uma autêntica ciência da ciência deve recusar oposições abstratas se afastando da ideia de que os problemas das ciências seriam constituídos somente no âmbito dela mesma, sem nenhuma alusão social de um contexto que condiciona tais problemas. Bourdieu lida com uma noção de campo científico como uma arena em que interage os interesses de diversas instituições na qual se processa um jogo, em que o que se coloca em questão é o monopólio da autoridade científica.

A contribuição de Bourdieu é muito relevante para nós porque nos convida a pensar sobre o tipo de autoridade deve ser investido, não apenas sobre Rolando Toro, mas todas as pessoas que junto com ele participaram de sua criação, no contexto das décadas de 70 e 80. Certamente Rolando não criou a Biodança sozinho, mas pensando e vivenciando-a junto com diversas pessoas.

O contexto de criação da Biodança talvez não tenha tido espaço para um debate de ideias próprio do mundo acadêmico no jogo em que a autoridade científica é o ponto central. Isso foi algo importante para seu desenvolvimento e sistematização. Entretanto, isso também nos leva a pensar de que forma, hoje, na comunidade Biocêntrica, vivemos e encaramos esta relação entre criador e criação, uma vez que o monopólio da criação tem se tornado um ponto mais central do que o debate em torno das ideias e conceitos científicos e seus avanços, de acordo com as novas descobertas e diálogos no âmbito das ciências.

A Biodança como disciplina científica é pouco difundida, razão pela qual as ideias que constituem seu corpo teórico e metodológico são mais vistas como algo pronto do que como algo a ser aperfeiçoado.

É fácil perceber que a ênfase ainda se coloca quase que totalmente em sua experimentação e vivência do que pensar sua constituição como proposição científica com algum resultado prático para humanidade. Isso é bem claro nos Congressos e Encontros que se seguiram ao primeiro, desde 1981. A maioria, em suas programações, tem uma concentração de atividade voltadas para apresentar e difundir a Biodança para população em geral, o que é muito bom! No entanto, tem pouca ênfase no pensar e apresentar os resultados da Biodança e compartilhar com outros profissionais de áreas afins, em termos de relevância enquanto um sistema de desenvolvimento humano, tal como se propõe a ser.

A meu ver os desafios da Biodança no campo científico para o século XXI é incialmente se reconhecer como uma disciplina científica que, como tal, deve se colocar aberta ao mundo no que se refere aos resultados de aplicabilidade de seu arcabouço teórico e metodológico. Esse é o desafio inicial porque a Biodança nasce fora dos muros acadêmicos, e não há nenhum desmerecimento disso. Entretanto, uma vez que seu arcabouço teórico se propõe com um modelo científico em sua origem, talvez esteja na hora de abrir-se ao debate como outras disciplinas científicas, e entrar no jogo próprio do campo científico, com suas regras de funcionamento, como bem nos já apresentado por Bourdieu. Isso requer, é claro pensar a Biodança menos no monopólio da criação e mais como criação científica para mundo.

 

 

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