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Estilo de Vida – Saúde como Capacidade – Por Maria Lúcia Pessoa

Estilo de Vida – Saúde como Capacidade – Por Maria Lúcia Pessoa

Pensar em saúde, e querendo ir além de suas definições clássicas implica o envolvimento e conexão com a vida em seus vaivéns, bem-estar, mal-estar, amores, paixões, torvelinho, calma… Tudo está num corpo-psíquico que habita um espaço social, interatuando em contínua e mútua modificação.

Ter…

Estar…

Ser?…

Qual verbo melhor define saúde na nossa existência? Estamos sãos, temos saúde quando não estamos doentes, ou somos pessoas saudáveis, mas se eventualmente adoecemos é como se não tivéssemos saúde? A partir do paradigma holográfico que contempla a simultaneidade e complexidade dos fenômenos, saúde e enfermidade são estados que coexistem e interatuam, em um equilíbrio oscilante e em permanente movimento.

Ser saudável é, além de sentir o estado de bem-estar corporal anímico e relacional, ter a capacidade de adoecer e recuperar-se.  E esta recuperação depende igualmente tanto em tratar especificamente a doença como estimular o estado saudável que existe em cada pessoa além do doentio. Pensar em saúde implica também repensar a doença como uma forma de sofrimento humano, de desequilíbrio e mal-estar no “corpo-espírito”.  A doença aparece como um indicador da necessidade de redefinir nossa vitalidade, nosso modo de viver, ou seja, pede transformações no estilo de vida.

O conceito de saúde e de doença e as formas de abordagem, o seu cuidado mudam segundo a concepção filosófica, científica e ideológica do tempo que a define. Na modernidade, a partir do paradigma cartesiano, racionalista e mecanicista, surge o corpo “máquina” que se repara para “estar” orgânica e fisicamente em condições de funcionamento. Não se pode negar a importância do avanço tecnológico que deu lugar a partir dessa filosofia, pois permitiu a intervenção na doença e saúde em situações antes inimagináveis. Novos posicionamentos éticos em relação à vida, a morte, a investigação e o limite das intervenções no organismo, foram fundamentais nesta era cientificista.

Entretanto, são ainda percebidas outras problemáticas nessa cultura com respeito ao corpo e à saúde: corpo-máquina, corpo dessacralizado, corpo imagem. Saúde como um bem-estar hedonístico, ligado a uma estética imposta, sujeita a intervenção da cirurgia plástica para “aperfeiçoar” eliminando “defeitos” e ocultar com o passar do tempo algum risco de perder a vida.

A submissão aos cânones da beleza que se publicam configura um mercado que gera dependência e frustração em caso da pessoa não poder ter acesso aos serviços oferecidos. E esta problemática se projeta nos vínculos, nas formas de relacionar-se afetiva e sexualmente. A saúde tem se “medicalizado” cada vez mais, deslocando a responsabilidade de seu “cuidado” para o campo profissional. Pensar em saúde requer ainda focalizar o habitat, as condições do contexto em que o ser humano vive e a sua influência na saúde e doença.

As condições do contexto atual, em sua dimensão de crise global, intensificam e reeditam vivências de adversidade, incertezas e fragilidade a nível individual e social, condições disfuncionais que produzem enfermidades chamadas “da civilização”.

A violência, o estresse, as relações sem amor, a competitividade e sobrecarga, a falta de solidariedade vão minando a confiança em si mesmo, a autoestima, a capacidade de expressão e de estabelecer vínculos afetivos nutritivos. O organismo, sobrecarregado para responder às exigências do meio, claudica e adoece.

A partir do paradigma holográfico de pensamento complexo, contemplou-se a simultaneidade e complexidade dos fenômenos e dos processos que suscitam transformações. Surge desta evolução um enfoque integral da saúde, um conceito amplo, transdisciplinar que aos aspectos biomédicos e à atenção da doença incorpora o conceito de que saúde é a atualização das capacidades humanas, vitais, afetivas, intelectuais, de comunicação, de valores e espirituais. Estas capacidades se desenvolvem e expressam ao nível do indivíduo, dos vínculos, dos grupos, das comunidades, das instituições, das culturas.

É uma concepção de que saúde e doença são “estados” que coexistem e interatuam num equilíbrio oscilante e em permanente movimento. Saúde confere protagonismo à pessoa, implica autocuidado, atenção a necessidades e desejos, ativa o conjunto de capacidades para a vida que habilitam a pessoa, os grupos e comunidades para cuidarem de si e dos outros, adoecer e recuperar-se, enfrentar riscos e superá-los.

Baseado nesta perspectiva, saúde tem a ver com o emprego de toda a unidade corporal e psicológica em vivências, comportamentos, relações e compromissos em um contexto social. É a possibilidade, na dimensão individual e social de criar, participar, eleger e promover mudanças. Possibilidade de realização, sentindo o ímpeto vital e o prazer de viver. A medida da saúde e de sua recuperação se expressa na capacidade de remontar as crises para instaurar uma nova ordem, interna e externa, sempre superando a anterior. Esta mudança na concepção de saúde-doença requer implementar enfoques terapêuticos integrativos multidimensionais, complementares, que além de tratar o enfermo, ativem potenciais de saúde existentes nas pessoas além da enfermidade.

Saúde como capacidade

A doutora Laura Weintein propõe definir saúde como um conjunto de capacidades para a vida, que habilitam a pessoa para cuidar de si e dos outros, adoecer e recuperar-se, enfrentar riscos e superá-los. As capacidades da pessoa são infinitas e múltiplas. Entre as capacidades que estão presentes imediatamente disponíveis ou de reserva, se destacam: a vitalidade, o gozo, a comunicação, a criatividade, a autocrítica, a dimensão crítica, a solidariedade, a autonomia, a capacidade prospectiva e de integração.

Capacidade vital: É a capacidade para as funções básicas da vida. A reação fisiológica ante a interação com o ambiente: emoções, alterações e agressões do meio, mobilizando as defesas ante o estresse e a doença, gerando adaptações mutuamente transformadoras.

Capacidade de gozo: Pessoa em consonância consigo mesma. Plenitude na relação do indivíduo com suas vivências com um tônus de adesão às mesmas, de identificação e de entrega.  É próprio da capacidade de gozo conscientizar desejos e preferências, aceitar e legitimar o prazer como parte do argumento existencial e criar condições de vida para sua concretização.

Capacidade de comunicação: É uma interação de captação e de entrega, já que a pessoa se encontra e se refaz na comunicação com as demais. Inclui tipos de relação com níveis variados de profundidade e implica afetividade, responsabilidade, cuidado, respeito, conhecimento, limites.

Capacidade de autocrítica: É a condição do ser humano de poder olhar-se estabelecendo distância e tolerância frente a suas próprias tendências, a suas ações, sua imagem. É uma capacidade da identidade saudável. Autoestima consistente, integração de todas as linhas de vivência.

A dimensão crítica: Acompanha a capacidade de autocrítica no enfoque geral da realidade. É a leitura assertiva dos acontecimentos e da própria capacidade de enfrentamento frente a eles. Inteligência afetiva em ação.

Capacidade crítica e de autocrítica: Significa possibilidade de crescer na tolerância às frustrações, aceitação da espera para a satisfação de necessidades e desejos, a dor e os conflitos como circunstâncias modificáveis a partir de uma atitude ativa, tudo como parte do crescimento.  Requerem flexibilidade, fluidez para enxergar através de ângulos diferentes, desfazendo a rigidez conceitual, os nós afetivos que levam ao preconceito e às posturas estereotipadas.

Capacidade para a criatividade: É a possibilidade de aceitar o novo. Implica a capacidade de totalizar recursos imaginativos, ideacionais, psicomotores, afetivos, sensoriais, para participar ou fazer frente a situações novas.  O terreno preparatório do ato criativo é a capacidade de discernimento, que possibilita abertura e tolerância quanto ao desequilíbrio, ao que é ambíguo, ao desconhecido, inarticulado ou pouco estruturado.  

Capacidade de autonomia: A autonomia surge da interação, como possibilidade de confiar nas próprias forças e de colocar limite à busca de apoio quando não é necessário, também considerando a possibilidade de pedir e ser receptivo à ajuda confiando nos vínculos afetivos e no poder de transformação e reparação do amor. A autonomia desenvolve a criatividade, a crítica e a autocrítica e é facilitada pelo desenvolvimento desta e de outras capacidades. Integração e coerência entre o que sentimos, pensamos e realização.

Capacidade de solidariedade: União com os outros, expressos em uma prática. É a consciência de unidade experimentada em um projeto através da criação com autonomia, autocrítica e crítica.

Capacidade prospectiva e integrativa: Capacidades que dão lugar ao próprio projeto de vida, requerendo capacidade de integração e maturidade.

Em nosso enfoque clínico biocêntrico saímos da polaridade saúde-doença, normal-anormal. Consideramos as pessoas em sua identidade para além dos diagnósticos, revalorizando a interação socioafetiva como fator de recuperação.

Este novo enfoque orienta as ações de promoção da saúde, prevenção de adoecimentos bem como assistência à saúde para um fortalecimento dos recursos pessoais, sociais e à harmonização das relações do indivíduo com seu entorno, em vez do direcionamento automático para o tratamento específico da doença.

No Grupo de Vivência Semanal e nas demais ações da Biodança, o tratamento das doenças são complementares. Todo o trabalho da Biodança se potencializa na integração, vivenciando a unidade do organismo e a sinergia do prazer, a vitalidade, sensualidade e afetividade na cura da doença.

Neste sentido trabalhamos com o ser humano em sua totalidade, não só “a parte sã” nem “a enferma”, já que consideramos indivisíveis os aspectos que as constituem. Em nossa experiência as enfermidades da civilização”, doenças autoimunes, psicossomáticas, problemas e saúde mental, padecimentos pós-traumáticos por agressões diversas, evoluem para uma recuperação de maneira sempre surpreendente.

O processo de vivência semanal de Biodança, a “matriz grupal afetiva”, de aceitação e contenção geram um processo dinâmico, com um compromisso e protagonismo progressivo dos participantes em que mesmo em contextos de grande adversidade, podem conectarem-se com a vida e produzir mudanças, mobilizando o potencial humano para a recuperação da saúde, e um novo estilo de vida para uma reabilitação existencial.

Estilo de Vida – aprendizagem e mudança

Nosso jeito de viver implica em processos e capacidades de elevação da saúde integral. O autoconhecimento é um primeiro passo muito significativo para o autocuidado e realização de mudanças necessárias.

As mudanças acontecem a partir da motivação pessoal de cada indivíduo. Para que ocorram são necessárias a existência de condições próprias internas (desejo, necessidade, vontade) e externas (ambiente, fatos, pessoas, informações).

O processo de mudança inclui:

–       Otimização funcional dos sistemas orgânicos solidificando a integração psicofísica.

–       Abrangência e complexidade incluindo os subsistemas motor, sensitivo, sensório, cognitivo, instintivo e visceral.

–       Sustentabilidade, levando em conta a capacidade de assimilação do organismo, o ambiente interno (homeostase), e a repercussão que essa mudança provoca, impacto no ambiente externo.

–       Progressividade é fundamental, pois a simples descompensação neurovegetativa desencadeia desordem em todo o sistema psicofísico.

–       O autocontrole a partir da fluidez e criatividade tem como resultado respostas assertivas e persistentes frente ao novo estilo de vida que se deseja manter.

A Biodança promove mudanças significativas e sustentáveis pois contempla todos os aspectos do processo, otimizando a qualidade afetiva do encontro, dos relacionamentos, ampliação da consciência, ação social e ecológica.

Para reorganizar seu projeto de mudança as etapas detalhadas a seguir servirão de base segura para seu processo de mudança:

Identifique a necessidade: porque eu quero mudar meu estilo de vida?

O ponto inicial é a observação de suas sensações.

Sensação de mal-estar, desconforto físico ou emocional é um indicador seguro que algo não vai bem.

Frente a esta situação cada um de nós se depara com a necessidade de mudar.

 

2º  Desejo de mudar da observação e identificação do desejo, mais um passo.  Algumas pessoas decidem prontamente, outras procrastinam até o limite máximo suportável. Tem gente que gerencia a própria mudança, tem gente que precisa de ajuda…

 

Tomada de decisão: é o impulso de sair do lugar físico e emocional em que se encontra. É um momento de angústia e ansiedade, e também de esperança e até de prazer.  Começam então as investigações de caminhos e algumas incursões e experimentações. A pessoa parte em busca de informações, assiste a palestras, frequenta curso, ouve e investiga as indicações de amigos. Ainda está frágil e muitas vezes dividida entre o velho e o novo, está insegura do desconhecido. Ora vislumbra o paraíso e se encanta, ora o teme. Sentindo necessidade, a pessoa deve buscar ajuda para não se acomodar. Manter a motivação é fundamental.

 

Planejamento e realização das ações pertinentes: o programa de mudança e os resultados esperados a curto, médio e longo prazo, definem os passos a realizar. Um grupo de apoio torna o processo mais leve.

 

Sustentabilidade: os programas de desenvolvimento, grupo de ajuda mútua, rituais de apoio, terapias, são alternativas, as vezes indispensáveis para que esse impulso inicial de mudar encontre sustentação. Na Biodança o grupo é suporte para transformação, oferecendo um continente afetivo de grande valia. Isso cria condições internas de sustentação para as novas propostas e necessidades.

 

Consolidação: é o coroamento da nova forma de ser e estar. Até chegar a essa fase a pessoa pode passar por recaídas, lapsos, perda da motivação… A criação de um continente interno, a força de vontade, a persistência para vencer os obstáculos é fundamental. O acompanhamento terapêutico é parte do processo de mudança; é indicado e de suma importância para a incorporação e manutenção do propósito.

 

Autocontrole: permanecer nos programas de autoconhecimento, autodesenvolvimento, praticar a Biodança regularmente é uma excelente opção para manutenção do novo hábito.

Conforme o estilo de vida que adotamos, as mudanças pessoais que realizamos, o alcance dos objetivos de desenvolvimento das capacidades em saúde, favorecemos a elevação da qualidade de vida e impulsionamos os fatores favoráveis à cura coletiva.

Bibliografia:

Biodanza Clinica – Atenção à Saúde e Cuidado com a Vida (cap. IX)

Biodança – Vida e Plenitude (cap. III)

 

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